terça-feira, 14 de dezembro de 2010


Festim Diabólico - Alfred Hitchcock.

por Marlon Marques.

























Os mais desavisados podem pensar que o filme trata de um sabá de bruxas – uma festa diabólica, mas não é desse diabolismo que o título se refere. O título original é Rope (Transatlantic Records, 1948) – em inglês corda – pois David, um dos personagens, é estrangulado com uma corda por dois jovens intelectuais. O traço macabro que perpassa boa parte da obra de Hitchcock, se dá nesse filme, pelo fato desses dois jovens ocultarem o cadáver em uma urna e depois fazer dela uma mesa de jantar em uma festa. Daí o título em português. O filme começa mostrando uma avenida, onde a vida corre em seu curso normal, pessoas indo ao trabalho, crianças indo à escola, pessoas indo e vindo de e para algum lugar. Com a câmera no parapeito de um edifício, lentamente a transição é feita, trazendo ao plano a janela e ai se dá o primeiro corte. No interior do apartamento – onde brilhantemente Hitchcock desenvolve como uma espiral toda a sua complexa trama – David é assassinado por Brandon e Phillip. Os debates em torno dos motivos do crime são muitos – cada um com o seu repertório pessoal aponta supostos fatores, caindo quase que como um consenso na psicopatia. Brando até pode ter traços de psicopatia, mas Philip nenhum. O que talvez me fique mais evidente, é o desnudamento da personalidade humana, justamente aquela que extrapola o gênero (homem/mulher). Para o crítico Carlos Armando, os filmes de Hitchcock, “falam do complexo e da transferência de culpa, da dupla personalidade, da troca de identidades”, e isso não é algo exclusivo de um sexo ou de outro – mas sim, do ser humano[1]. O filme traz também outra questão de fundo: a moral. E para isso, Hitchcock se aproxima da fórmula binária de Lévi-Strauss. Primeiro ele já nos mostra as diferenças de Philip e Brandon – o primeiro é mais inseguro e fraco, enquanto o segundo é confiante e forte. Depois (já na festa), ele nos mostra de um lado os dois jovens e do outro os convidados – onde os primeiros representam a superação da moral cristã (Nietzsche), e os segundos a tradição moral ocidental. Se repararmos bem, o professor Rupert entra na trama como um intermediário, como um elemento distinto dos dois grupos, apesar de ser o mentor intelectual dos jovens. A trama é desenvolvida de uma forma muito prática, o que mostra a genialidade de Hitchcock a despeito de todas as dificuldades técnicas a ele impostas. Como Rope é uma obra oriunda do teatro, Hitchcock teve que se utilizar desses recursos para nos dar a exata noção de tempo continuo. Para isso também, o diretor teve o cuidado de usar a sala principal do apartamento como centro da trama, pois nela há uma imensa janela, onde o tempo todo nos deparamos com as mudanças de tonalidade do céu (isso seria impossível no cinema preto e branco) – evidenciando a passagem do tempo. O público é atraído pela trama não apenas pelo enredo bem estruturado do roteiro, mas pela caracterização teatral, que traz em si uma proximidade maior, e também pelo fato de Hitchcock a toda hora nos dizer que isso acontece o tempo todo em nossas vidas e que é justamente assim que agimos. Quem confessa um erro no instante seguinte? Ninguém. Todos nós escondemos, omitimos, mentimos, trapaceamos, então vendo tudo isso na trama, nos sentimos nela – e é isso que cria a tensão. Nós expectadores sabemos que o corpo está na urna – perversamente, Hitchcock numa cena, põe a urna no primeiro plano e a porta no plano de fundo – a empregada sra. Wilson ao fazer a arrumação pós-jantar a toda hora parece que vai abri-la e revelar o cadáver, isso vai provocando agonia no expectador – você logo associa com a descoberta de algum erro seu, mas na verdade ali é Brandon e Philip e não você, mas você se vê neles. Em outro momento, o professor Rupert ao indagar Philip sobre se David havia passado pelo apartamento, percebe a mentira não apenas em sua fragilidade e aparente nervosismo, mas numa pista que Hitchcock nos dá – Rupert vai pegar seu chapéu no armário, mas se confunde e pega um outro – nesse momento a câmera dá um close nas mãos de Rupert e nos mostra no interior do chapéu a sigla “D.K.”, David Kentley – ou seja, o mesmo passara por ali e esquecera seu chapéu. É o que Bazin sentenciou quando disse: “a cristalização passageira de uma realidade cuja presença nos arredores é sempre sentida” – Hitchcock desmente Brandon e a nós, dizendo que não há crime perfeito, que sempre haverá evidências.[2] Rupert com sua experiência vai colocando os jovens na parede, especialmente o mais fraco deles, Philip, que aos poucos vai cedendo, num misto de fragilidade e embriaguez. Philip a meu ver é a primeira vítima da moral, pois passa o filme todo atormentado pela culpa. Já Brandon não, esse vê o crime como “uma obra prima intelectual” – coroando a superioridade do super-homem ante aos homens[3]. A segunda vítima da moral é o professor Rupert – que ao longo da trama vai percebendo os elementos discursivos de Brandon – na cena da conversa coletiva (todos os convidados), onde Brandon com seu ar superior diz que não vê os homicídios como coisas ruins, principalmente quando o assassinado é um ser inferior. No final do filme há o embate entre Rupert e Brandon, onde o primeiro se espanta com a interpretação do segundo sobre os ensinamentos de filosofia. Rupert diz: “você pensa que é Deus para determinar quem deve ou não morrer e apontar as pessoas como inferiores” – nota-se nessa fala, indignação, mas o desapontamento se dá quando ele cai em si e vê que seus ensinamentos foram deturpados e que indiretamente fora responsável pelo crime. “Aquele que vê o crime no lugar em que está é responsável por ele, o verdadeiro culpado é aquele que sabe o que o crime quer dizer” – isso compartilha a culpa entre os três, Philip, Brandon e Rupert.[4] Rupert não imaginava que suas palavras fossem capazes de gerar tal atrocidade, mas a arrogância de Brandon (grande interpretação de John Dall) e sua apreensão literal da teoria nietzschiana, o levou ao extremo. Brandon não suportava o fato de as pessoas guiarem suas vidas pela fé ou pela moral, pois considerava apenas o intelecto como único guia capaz de chegar à verdadeira razão – sobre isso disse Nietzsche: “a maior parte das pessoas não acha desprezível acreditar nisto ou naquilo e agir de acordo sem ter pesado pró e o contra, sem ter consciência profunda das suas supremas razões de agir, sem mesmo de ter incomodado a inquirir essas razões, os homens mais dotados e as mulheres mais nobres também fazem parte desse grande número. Que me importam bondade, finura e gênio, se o homem que possui essas virtudes tolera no seu coração a mornice da fé, do juízo, se a exigência da certeza não é o seu mais profundo desejo, a sua mais íntima necessidade”.[5] O grande mérito de Festim Diabólico é contar uma trama complexa de uma forma simples, didática – como na cena em que Rupert descreve o crime e a câmera acompanha a descrição, e envolver o expectador de uma tal maneira, onde esse torna-se parte da narrativa e sofre com o sofrimento dos personagens.



[1] ARMANDO, Carlos. A sala dos sonhos. Belo Horizonte: C/Arte editora, 1999. p. 164.

[2] BAZIN, André. O Cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 136.

[3] FRUNDT, Bodo. Alfred Hitchcock e seus filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. p. 115.

[4] VEILLON, Olivier-René. O cinema americano dos anos cinqüenta. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 110.

[5] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 37.



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