segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O Anjo Exterminador por Vivian Lie

“Deus ordenou a Moisés “que prevenisse os chefes de famílias israelitas para que tomassem e preparassem um cordeiro de um ano e sem mancha, e com o seu sangue tingissem todas as portas”.
E disse Moisés ao seu povo: 'Esta noite mandareis assar este cordeiro e o comereis com pão ázimo (sem fermento), em pé, com a cintura cingida, sandálias calçadas, e um cajado na mão, como quem está com pressa de partir. Mas ninguém ponha o pé fora de casa antes que amanheça, porque nesta noite o Anjo do Senhor ferirá os egípcios; onde vir os portais tintos de sangue, não entrará e passará além”.
“Pela fé Moisés celebrou a Páscoa e fez a aspersão do sangue, a fim de que o anjo exterminador dos primogênitos não tocasse os israelitas”.
“O cordeiro pascal é a figura do Redentor, que com o seu sangue nos resgatou da morte e abriu-nos o caminho da salvação eterna"
Um grupo de pessoas da classe alta desfrutam de um jantar formal na mansão de amigos e por uma força maior e inexplicável não conseguem ir embora. Com o passar do tempo as convenções vão caindo até que estes elegantes convidados chegam à degradação máxima mostrando seus instintos primitivos.

O filme Anjo exterminador é aberto para inúmeras interpretações e pode ser analisado sob diversos aspectos. É possível uma interpretação sob o ponto de vista religioso, político, idílico, filosófico ou existencialista e do universal embate entre a burguesia e a classe trabalhadora entre outros.

Buñuel não pontua nada. Inclusive o próprio afirmou em entrevistas que muitas de suas escolhas foram arbitrárias sem nenhum simbolismo definido. Mas ao falar sobre as repetições que empregou diversas vezes neste e em outros de seus filmes, Buñuel afirma que gostava da característica hipnótica e idílica das repetições. Partindo deste princípio o filme inteiro pode ser interpretado como um devaneio ou um sonho, pela característica idílica das repetições, da cena da mão que anda desprendida de um corpo ou do absurdo da situação em que os personagens se encontram. E como nos sonhos, nos deparamos com símbolos e situações absurdas que não conseguimos explicar quando estamos conscientes, é possível que Buñuel tenha arbitrariamente, imprimido em seu filme símbolos e situações que conscientemente para ele não têm nenhum significado, mas que na verdade seriam manifestações de seu subconsciente que no conjunto de sua obra fazem sentido.

Mas há considerações que podemos fazer como possíveis interpretações do filme.

O título “O anjo exterminador” está na Bíblia e é referência em certos cultos religiosos. Na Bíblia Deus deu ordem a Moisés para que este prevenisse os israelitas dos ataques do anjo do extermínio aos primogênitos de todas as famílias. Para que fossem poupados os israelitas teriam que tingir suas portas com o sangue de um cordeiro, que deveria servir de alimento naquela noite,sendo que estas famílias foram instruídas a não sair de casa até o amanhecer. O cordeiro então passou a significar a salvação, pois com seu sangue os resgatou da morte e lhes abriu o caminho para a salvação eterna.
É impossível não se estabelecer paralelos entre esta parábola bíblica e o filme de Buñuel. Como as famílias que não podiam sair de casa até o amanhecer, os burgueses não podiam ou não conseguiam sair da casa mesmo que por motivo desconhecido. Eles passam o decorrer dos dias como se a noite do jantar nunca houvesse terminado, idéia que é reforçada no final do filme quando Letícia faz a reconstituição do que ocorrera naquela noite com o objetivo de se fechar o ciclo que estaria inconcluso e assim conseguindo libertar a todos. Há também o elemento do cordeiro que no filme também salva os burgueses da morte. E isso acontece duas vezes pois a última cena do filme mostra um maior número de cordeiros entrando na igreja onde os burgueses novamente e agora outras pessoas estão aprisionadas, talvez como uma forma de passar a idéia de salvação, ressurreição ou a piedade de Deus. Outro ponto seria o de que no mundo de fora da mansão, militares exterminam manifestantes nas ruas, o que pode ser um paralelo com o anjo que extermina os primogênitos.

Buñuel declarou que quis mostrar com este filme que a agressão é inata ao ser humano. Ele mostra que até mesmo a burguesia, que se julga superior aos demais, quando levada ao limite, se comporta como seres primitivos ou animais. Estamos acostumados a nos esconder por trás de convenções sociais, portanto são em situações limite que vemos o que uma pessoa seria capaz de fazer.A burguesia vê o proletariado como animais, o que também é dito por uma das personagens no início do filme. Assim se dá uma inversão de papéis.

Podemos pensar também sob o aspecto da alienação da nossa sociedade. No filme, os convidados são como os cordeiros que seguem uns aos outros sem saber o porquê, sem questionar. Ninguém sabe por que não conseguem sair da casa, porém como cordeiros fazem o mesmo que o outro faz. E assim ninguém consegue tomar a iniciativa de ir embora mesmo que isto seja prejudicial a eles. É como a nossa sociedade que cegamente vive sendo influenciada por outros e pelo sistema sem questionar. E quando querem sair de tal situação que lhes é prejudicial não conseguem tomar a iniciativa para que a mudança ocorra de fato.

Do ponto de vista político, poderia ser uma crítica à ditadura que acontecia na época em que este filme foi feito. Da mesma forma que a ditadura tira a liberdade do povo que está fora da casa, os burgueses simpatizantes da ditadura também têm sua liberdade arrancada pelo fato de não poderem por uma força maior, mesmo que estranhamente, sair da casa. O que também pode passar a idéia do poder do inconsciente coletivo e da unidade, pois afinal de contas não somos tão distintos uns dos outros como julgamos ser.

Porém devo enfatizar que tudo que foi dito são apenas hipóteses, pois é possível que na verdade Buñuel esteja nos pregando uma peça. Como ele mesmo disse:

“As pessoas sempre querem encontrar uma explicação para tudo. É a conseqüência de séculos de educação nos moldes burgueses. E para tudo que não conseguem achar uma explicação, elas recorrem a Deus como último recurso. Mas para que isto vai lhes servir? Pois ao final terão que explicar a Deus.”

Desta forma Buñuel faz de nós, espectadores, como os burgueses que estão aprisionados pelas suas próprias convenções na casa, estamos aprisionados em nossas mentes tentando em vão explicar este filme.



Um comentário:

  1. Parabéns, que leitura do filme. Fiquei impressionado como as citações bíblicas casam nas metáforas apresentadas no filme. Depois desta leitura passo admirar ainda mais o trabalho do diretor.

    Também interessante como o discurso das comparações do cinema com o onírico, estão sempre presente nas produções e analises cinematográficas, pena que não deu para discutirmos direito isso na oficina.

    ResponderExcluir