domingo, 19 de dezembro de 2010

Garrincha, alegria do povo.

por Marlon Marques.























Garrincha não foi melhor jogador que Pelé. Mas Garrincha com certeza é o mais brasileiro de todos os nossos craques. Dentre todos os saídos de favelas, oriundos das classes mais baixas, dos descamisados e descalços – nenhum se compara quanto ao “brasilismo” a Garrincha. As imagens do documentário “Garrincha, alegria do povo” (Joaquim Pedro de Andrade, 1962) – trazem ao espectador a condição lírica do craque em campo. Garrincha nascido Manoel, logo tornou-se pela informalidade brasileira Mané, tal qual Luis, torna-se Lula. “Mané” é o mesmo que bobo, e bobo chamamos “João” – nome pelo qual Garrincha chamava qualquer de seus marcadores e adversários – do beque de jogo de fim de ano de empresa à um Nilton Santos ou Luis Pereira. Garricha é assim tão brasileiro porque leva a vida no improviso, tal qual todo brasileiro – sem eira nem beira, planejamento ou preocupação. Essa característica diferencia-nos do futebol científico e burocrático da Europa, deu-nos uma cara, e essa cara é toda ela Garrincha. “Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro do instinto”[1] – o que o brasileiro faz quando o mês é mais longo do que o dinheiro? Inventa algo. Tira do bolso alguma saída mirabolante, e Garrincha faz o mesmo para penetrar zagas como paredões intransponíveis (veja a gama de dribles durante o documentário). Garrincha não humilha os adversários pela soberba ou pelo regozijo, mas sim pelo instinto – a humilhação não é a meta, sim a conseqüência. O faz como late o cachorro. Mané vê a todos com igualdade de um “joão” – com a pureza de um eterno menino – a isso o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou de “homem cordial”. Garrincha morreu na pobreza, mas ainda sorridente – com o mesmo sorriso do auge de seu esplendor (o momento que trata o documentário), e nisso ele também se transforma em espelho do Brasil, humilde, pacato, cativo a sua condição e pobre. Entretanto precisa apenas de um Botafogo versus Flamengo para Mané compensar a todos os brasileiros de suas humilhações pessoais e coletivas.[2] Sim, o brasileiro precisa de pouco para ser feliz (que é muito), apenas de diversão, de magia, de dribles e fintas – seja num mundo imenso de fantasias ou num trecho qualquer do campo, já que “para um drible de Garrincha, a superfície de um lenço era um latifúndio”[3]. O filme é documentalmente muito bem pesquisado, intercalando diversos momentos do craque – captando-o do final dos anos 50 até a o início dos anos 60, no auge de sua carreira que culminaria com a conquista hercúlea da Copa do Mundo do Chile no ano do documentário, 1962. A astúcia principal do diretor é o jogo que ele faz entre fotos e vídeo – há uma cena em que Mané para na frente de um de seus “joões” antes do drible, o diretor então aproxima em fotografia o rosto atento do marcador, tentando em vão nos passar (o marcador, não o diretor) concentração, como se isso fosse resolver. Lance seguinte: quedas e rodopios no próprio eixo, pois como disse Armando Nogueira, o mistério de Garrincha apenas Deus sabe decifrar, nós (incluindo seus marcadores) meros humanos apenas ficamos imóveis ante ao gênio[4]. O povo se igualava para ver o espetáculo Garrincha. O cronista Mário Filho disse certa vez que “diante de Garrincha, ninguém era mais torcedor de A ou de B. O público passava a ver e sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos assim, um deleite puramente estético da torcida”[5]. Garrincha não fazia o espetáculo pelo dinheiro ou pela fama, o fazia pelo amor. O brasileiro é muito mais coração do que razão, e nisso mais uma vez ele nos representa, nos totaliza. Quantas foram às infiltrações recebidas nos joelhos? Quantas vezes não jogou aquém de suas condições? – quantos brasileiros também não vão as fábricas e roças darem seu sangue sem condições dignas? Garrincha é o Brasil, a alegria do povo, pois com ele e apenas com ele, o brasileiro se sentia alguém e algo de valor. O que o moço humilde da arquibancada – branco ou negro, via em campo, era algo familiar, algo próximo de sua condição. Garrincha nasceu imperfeito, feio, desbotado, torto, fora dos padrões “franceses” e “burgueses” da época. Em cada um de nós há um pouco de Garrincha – da zombeteira ginga do dia-a-dia, do levar as coisas na “esportiva” nas relações pessoais, na informalidade, na cordialidade, no improviso. Isso tudo torna Garrincha o mais brasileiro de todos os nossos craques – pois “em 62 o mais indigente dos brasileiros pode tecer a sua fantasia de onipotência, e por tudo isso, as multidões sem que ninguém pedisse, sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os portões e ofereceram a Mané Garrincha uma festa de amor como não houve igual nunca”[6]. O documentário embora mostre o Mané apenas em campo, dá aqueles com sensibilidade mais apurada, a dimensão exata do craque e do jogo. Aquilo não são apenas imagens de um jogo, aquilo é a própria vida. Aquele não é apenas um homem trabalhando, sim um anjo torto a brincar com seu brinquedo (a bola), enganando, rodopiando, girando, fazendo diabruras como um Saci-pererê, um Curupira. O Curupira e o Saci tal qual Garrincha são seres fantásticos, imagéticos, fabulosos e dotados de pequenos defeitos que os tornam acima dos demais. As pernas tortas que a princípio trariam ao menino desvantagem, logo tornaram-se hábeis ferramentas de seu ofício, veja a semelhança apontada por José Miguel Wisnik: “O curupira [...] distingue-se por um traço físico peculiar: seus pés são virados para trás – quando o curupira corre numa direção, suas pegadas correm na direção contrária. O curupira é veloz e enganador”[7]. Não temos o heroísmo grego, a perfeição dos seus deuses, temos um folclore maldito, imperfeito – com seres da noite, e nosso Mané, repito, é como nós, imperfeitos, pobres, feios. E como qualquer um de nós, era cheio de dúvidas, medos, desejos, sonhos – para ele não havia diferença entre o Olaria e a seleção Tcheca, não havia diferença entre caçar passarinhos e ganhar um título mundial, ou entre a mão suja do balconista que lhe dava uma dose qualquer e a mão alva do príncipe da Suécia – Garrincha nos torna mais humanos. E entre as certezas, alegrias e incertezas, Mané também via (como muitos brasileiros) na bebida (e no jogo, noutra dimensão) uma fuga de sua dura realidade: “eu bebo e vocês me internam. Eu saio, bebo de novo e vocês me internam de novo. Por que vocês querem que eu volte pra merda da minha vida”[8]. Garrincha é com certeza o Charlie Chaplin do futebol, o eterno cômico, aquele que nos revigora, que enche nossas almas de plenitude e nos salva na dimensão da eternidade. Garrincha o mais brasileiro de todos os jogadores, o mais humano dos imperfeitos, e o mais perfeito entre os imperfeitos.



[1] RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p. 63.

[2] RODRIGUES, Nelson. Idem. p. 120.

[3] NOGUEIRA, Armando. O canto dos meus amores. Rio de Janeiro: Ed. Dunya, 1998. p. 11.

[4] NOGUEIRA, Armando. Idem. p. 13.

[5] RODRIGUES, Nelson. Idem. p. 63.

[6] RODRIGUES, Nelson. Idem. p120.

[7] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p.276.

[8] CASTRO, Ruy. Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p.483.


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